O que é hidrocefalia?
Todos os pacientes, adultos ou crianças, tem um líquido que banha o cérebro, este líquido sendo conhecido com líquido cefalorraquidiano (LCR) ou simplesmente “líquor”;
A produção de LCR ocorre nos plexos coróides, que se localizam em cavidades dentro do cérebro que são chamadas de ventrículos laterais, na quantidade aproximada de 20 ml por hora, ou quase 500 ml por dia em um adulto. Após circular, o líquido é absorvido por estruturas chamadas “granulações aracnóides” – nome difícil, não?
É muito importante ressaltar que este “líquido”, o líquor, precisa circular dentro do sistema nervoso, banhando diversas estruturas do cérebro e da medula espinhal. As funções principais desse líquido são hidratar e proteger o cérebro contra impactos. Há cerca de 140ml de LCR no nosso sistema nervoso, estando 70 ml nos ventrículos cerebrais e outro tanto banhando o resto do sistema nervoso, no chamado espaço subaracnóideo. Veja na figura abaixo:
Em algumas situações este líquor pode se acumular no cérebro, nas cavidades dos ventrículos cerebrais, fazendo com que elas aumentem significativamente de tamanho (dilatação) e pressionem o cérebro que está em volta delas. Este aumento de pressão cerebral pode causar uma série de danos neurológicos e em casos mais graves pode até levar a morte. Quando estas cavidades ventriculares estão cheias de líquido, além da quantidade normal, temos a doença chamada de hidrocefalia! Por esse motivo que popularmente as pessoas dizem que hidrocefalia é chamada de “cabeça d’água” ou “excesso de água no cérebro”. Veja na figura abaixo o que acontece no cérebro com hidrocefalia.
Mas… por que acontece a hidrocefalia?
As principais situações de acúmulo de líquor (hidrocefalia) são:
1- Sangramentos – Quando um sangramento inunda o espaço subaracnóide ou as cavidades ventriculares cerebrais ele causa acúmulo de líquido por 2 fatores principais: obstrução e inflamação. O sangue pode formar coágulos que impedem o líquor de circular normalmente, causando pontos de “bloqueio”. Além disso o sangue “irrita” (inflama) as granulações aracnóides, que são as estruturas responsáveis por absorver parte do líquor produzido. Sem circular direito e sem ser absorvido de forma adequada o líquido se acumula.
2- Obstrução – Ocorre quando há um ou mais pontos de obstrução à circulação do líquor, como ocorre em tumores, cistos, septos, etc. O líquido que não consegue circular não chega até as granulações aracnóides para ser absorvido adequadamente.
3- Aumento da produção – É uma situação mais rara, mas ocorre quando existem tumores, como os tumores do plexo coróide, que produzem excesso de líquor! Deste modo o sistema não tem capacidade de absorver todo este líquido, que consequentemente também se acumula.
4- Pós infecção – Em países em desenvolvimento como Brasil, as hidrocefalias pós-infecção podem chegar a 60% de frequência, em relação a todas as causas de hidrocefalias. Quanto mais severa a meningite ou ventriculite, maior a chance de desenvolver hidrocefalia. Geralmente a hidrocefalia pós-infecciosa é por causa mista, envolve inflamação das granulações aracnóides (como já explicado), formações de septações (septos) nos ventrículos que dificultam a circulação de líquor e alterações até em nível das células que revestem o interior das cavidades ventriculares – as células ependimárias. Um estudo recente publicado na Nature (uma das maiores revistas científicas do mundo), o Dr. Chay Kuo e sua equipe, da Universidade de Duke nos EUA, mostraram que algumas infecções podem fazer com que as células ependimárias, revertam para células indiferenciadas… ou seja, é como o corpo não entendesse mais que aquela célula tem uma função específica (pode ser considerada como células imaturas). Por que isso é significativo? Porque as células ependimárias possuem estruturas microscópicas semelhantes a pelos, conhecidas como cílios. Outros estudos mostraram que o movimento dos cílios desempenha um papel importante no movimento do líquido cefalorraquidiano (LCR) e que a hidrocefalia pode se desenvolver se os cílios estiverem danificados ou ausentes. Aí vem o problema!!! Quando as células ependimárias retornam às “células indiferenciadas”, elas perdem seus cílios, favorecendo a hidrocefalia, mesmo em pacientes com infecções mais “leves”, sem septações, etc. Fantástico não?
5- Malformações –algumas malformações no sistema nervoso também estão acompanhadas de hidrocefalia.
Todas as hidrocefalias são iguais?
NÃO. O acúmulo de líquor dentro dos ventrículos pode ocorrer por vários motivos, como maior produção, menor absorção ou dificuldade de circulação conforme já explicamos. Se a hidrocefalia for causada porque o líquor não consegue circular adequadamente pelos espaços cerebrais temos uma hidrocefalia obstrutiva. Se for causada por excesso de produção ou dificuldade de absorção é chamada de comunicante, pois não há um ponto de obstrução definido.
Isto é muito importante pois guiará diretamente o tipo de tratamento que podemos oferecer para estas crianças.
Quais são as causas de hidrocefalia em crianças especificamente?
A hidrocefalia pode começar em bebês recém-nascidos ou mais tardiamente na infância.
As causas mais comuns de hidrocefalia em crianças são:
1- Tumores cerebrais –a causa mais frequente em tumores é por obstrução a circulação do líquor. Mas os tumores também podem causar hidrocefalia por aumento da produção de líquor, sangramentos, e até infiltração neoplásica nas meninges cerebrais (metástases).
2- Cistos cerebrais (como os cistos de aracnóide) –geralmente quando estes cistos estão dentro dos ventrículos cerebrais. Os cistos aracnóides fora dos ventrículos não costumam causar hidrocefalias, a menos que sejam muito gigantes e comprimam o ventrículo de fora para dentro.
3- Causas congênitas (malformações) – como a estenose de aqueduto cerebral (70% das causas congênitas), Chiari, etc.
4- Ingestão de drogas na gestação (como LSD e cocaína) –causando malformações e lesões cerebrais no feto.
5- Doenças infecciosas durante a gestação –infecções congênitas, como rubéola, sífilis, citomegalovírus e toxoplasmose
6- Doenças infecciosas após o nascimento – como meningites/ventriculites.
7- Hemorragias (sangramentos) intracranianos e intraventriculares – pode ocorrer em AVCs em crianças, sangramentos expontâneos ou traumáticos. Vale ressaltar que a hemorragia da prematuridade é uma causa importante de hidrocefalia em bebês prematuros que tiveram este sangramento. Você pode ler mais sobre este tema aqui.
Quais são os sintomas de hidrocefalia?
Os sintomas ocorrem porque o acúmulo de líquido começa a pressionar o cérebro que não tem para onde ir, já que o crânio é rígido (duro) e não expande para acomodar esse volume “extra” de líquido. Os sinais e sintomas variam muito de acordo com a idade da criança, mas são iguais em uma hidrocefalia por qualquer causa, comunicante ou não. Veja abaixo:
Sintomas em bebês e recém-nascidos:
- Crescimento rápido da cabeça do bebê
Irritabilidade / Agitação / Sonolência excessiva - Vômitos frequentes mesmo sem relação com a alimentação
Dificuldade de se desenvolver / de se alimentar
Convulsões - Veias na cabeça/fronte (“testa”) visíveis e aparentes
- Desvio dos olhos para baixo e/ou para dentro o tempo todo
- Fontanela (“moleira”) cheia e tensa mesmo quando o bebê está quieto/dormindo.
Sintomas em Crianças
- Dor de cabeça
- Aumento da cabeça em relação ao esperado para idade
- Náuseas/vômitos
- Alterações de equilíbrio e coordenação
- Convulsões
- Alterações de comportamento / sonolência ou agitação
- Dificuldade escolar
- Perda de marcos de desenvolvimento adquiridos (ex. andar, falar)
- Puberdade precoce
Atenção: Os pais sempre devem estar atentos a observar a região da válvula e do cateter que passa por baixo da pele em crianças que já possuem a válvula para hidrocefalia. Caso haja inchaço ou vermelhidão nestes locais devem procurar imediatamente um pronto socorro para avaliação e/ou entrar em contato com o neurocirurgião da criança.
Como é feito o diagnóstico de hidrocefalia?
Existem 2 tipos de hidrocefalia:
1- Congênita – quando o bebê começa a ter hidrocefalia dentro da barriga da mãe devido a alguma alteração no sistema nervoso.
2- Adquirida – quando a criança adquire uma causa de hidrocefalia ao longo da infância.
A hidrocefalia congênita pode ser descoberta durante a gestação, em um ultrassom pré-natal de rotina, mas frequentemente é diagnosticada durante a infância ou enquanto bebê até o 1º ano de vida. Já as hidrocefalias adquiridas têm alguma causa/doença precipitante.
O diagnóstico é facilmente comprovado através de exames de imagem (tomografia ou ressonância de crânio) mostrando dilatação do sistema ventricular e o ponto/causa de obstrução, caso haja. Nos casos de bebês com a fontanela aberta (“moleira”), podemos fazer um ultrassom do crânio pela própria fontanela para detectar a hidrocefalia. Veja abaixo uma tomografia de crânio de uma criança com ventrículos de tamanho normal comparado a de uma criança com grave hidrocefalia.
Qual é o tratamento da hidrocefalia?
O tratamento cirúrgico da hidrocefalia pode ser feito de 2 formas básicas:
1. Colocação de uma válvula – esse é o tratamento dito “clássico”, mais antigo e tradicional, e muito efetivo. Pode ser feito para as hidrocefalias obstrutivas e comunicantes. Nesse tratamento o bebê ou a criança recebe um sistema de derivação ventricular. O objetivo deste sistema é drenar o excesso de líquido do sistema ventricular e transportar através de cateteres, que ficam por baixo da pele, para outra cavidade do corpo. A cavidade mais comum para colocar esse cateter é o abdômen (sendo então chamada derivação ventrículo-peritoneal), mas também pode ser para o coração (derivação ventrículo-atrial), pleura, etc.
Existem diversos tipos de válvula e diversas marcas. De um modo geral, as válvulas podem ser de pressão fixa, programáveis ou auto-ajustáveis, sendo estas últimas mais raramente usadas em crianças. Cada marca e modelo tem vantagens e desvantagens. Por este motivo, é muito importante conhecer a marca, modelo e pressão da válvula que seu filho tem e sempre guardar esta informação.
2. Neuroendoscopia (Terceiro ventriculostomia endoscópica) – Essa é uma cirurgia mais moderna que a colocação de válvula, mas não serve para qualquer tipo de hidrocefalia. Nessa cirurgia o neurocirurgião introduz um aparelho com câmera dentro do ventrículo que é capaz de criar um caminho alternativo para o líquor circular, sobrepondo um ponto de obstrução, e por esse motivo essa cirurgia geralmente se aplica para hidrocefalias obstrutivas. Essa cirurgia apresenta diversas vantagens, sendo a maior delas não ficar dependente de um sistema de shunt (válvula). Por vezes, quando há um tumor ou cisto, eles podem ser removidos também com esse procedimento. Para saber se o caso de seu filho é possível ser tratado desta forma, consulte um neurocirurgião que tenha experiência e especialidade nessa técnica.
Entendendo melhor o sistema de derivação ventrículo-peritonial…
Este sistema é o tratamento mais comum de crianças com hidrocefalia, por isso é comum surgirem muitas dúvidas… Em primeiro lugar, este sistema, independente da marca, tem 3 componentes: um cateter proximal, uma válvula e um cateter distal (veja figura). Todas elas ficam embaixo da pele.
O cateter proximal é o que fica inserido no cérebro e vai até a cavidade ventricular, de onde “suga” o líquor em excesso. Quem regula se o líquido deve ou não ser drenado e em que quantidade é a válvula de derivação, que pode funcionar em intervalos pré-definidos (válvulas de pressão fixa) ou ser determinado pelo médico uma pressão de drenagem (válvulas programáveis). A válvula se liga ao cateter distal, que vai levar então o LCR até a cavidade do abdômen para que seja absorvido. Uma curiosidade que muitos pais perguntam: o cateter distal não é colocado “dentro” de nenhum órgão no abdômen, na verdade ele é colocado na “cavidade” no abdômen, e é o peritônio, uma membrana que reveste esta cavidade por dentro que absorve este líquido e não um órgão em específico.
Os pais sempre perguntam sobre se a criança com válvula terá uma vida normal, poderá praticar esportes, etc. De forma geral a válvula não impede a criança de brincar e realizar atividades normais, porém alguns cuidados podem ser necessários em alguns casos, por isso é sempre bom conversar sobre estas dúvidas com o neurocirurgião de confiança da criança, que saberá sobre o tipo de válvula e tipo de hidrocefalia que ela possui para dar o melhor aconselhamento.
O que fazer quando a hidrocefalia é diagnosticada na gestação, quando o bebê ainda está dentro da barriga da mãe?
Nesses casos a criança deve ser acompanhada mais de perto pelo obstetra e pelo neurocirurgião pediátrico que avaliarão a causa, gravidade e progressão da hidrocefalia. Também avaliarão se há necessidade de algum procedimento intraútero, como a colocação de uma derivação ventrículo-amniótica (derivação do ventrículo cerebral do bebê para o líquido amniótico do útero) através de um cateter “pigtail”. O neurocirurgião pediátrico nesta situação também se prepara para tratar o bebê recém-nascido, no melhor momento possível, inclusive de forma precoce nas primeiras horas de vida dele dependendo da gravidade do caso.
Quais as sequelas de hidrocefalia para um bebê ou uma criança?
A chance de sequela neurológica depende da causa e do grau de hidrocefalia. Se a criança for tratada e diagnosticada cedo, normalmente a chance de sequela é menor. Já se a hidrocefalia piora rapidamente ou dura muito tempo, pode causar lesão cerebral grave e até a morte.
Os bebês que começam a ter hidrocefalia dentro da barriga da mãe podem ter problemas de desenvolvimento adequado do cérebro pois a hidrocefalia “pressiona” o tecido nervoso em formação e pode dificultar que ele se desenvolva adequadamente. Entretanto, mesmo com hidrocefalias graves, o bebê quase sempre sobrevive dentro da barriga da mãe e ao parto, mas necessita de uma cirurgia mais precoce pela equipe de neurocirurgia pediátrica.
As crianças com hidrocefalia têm expectativa de vida normal, mas são mais propensas a ter dificuldade de aprendizado ou demoram mais tempo que as crianças normais para andar, falar, etc. Até mesmo depois de tratadas, as crianças podem ter inteligência mais baixa, problemas de memória e problemas visuais, incluindo estrabismo (olhos desalinhados).
Como é feito o acompanhamento da hidrocefalia?
O acompanhamento deve ser feito por um neurocirurgião, preferencialmente pediátrico. Embora seja uma doença relativamente “comum” no dia a dia deste profissional, o tratamento da hidrocefalia pode ser bem complexo em alguns casos. Muitas crianças colocam uma válvula quando bebês e ficam com ela por toda a vida, enquanto outras tem infecções, disfunções frequentes, hipo/hiperdrenagem da válvula, precisam de ajustes de pressão, enfim! É preciso ter experiência para manejar estas complicações e estas válvulas, sobretudo quando estamos lidando com crianças que muitas vezes nem conseguem falar.
Não existe uma “fórmula” única de acompanhamento. O tempo de retorno entre as consultas, medidas de perímetro cefálico, exames de imagem etc, ficam a cargo de cada neurocirurgião de acordo com sua rotina, sua experiência e da gravidade e evolução da doença da criança. É sempre importante que os pais tenham o seu neurocirurgião de preferência, e sobretudo que tenham já previamente acordado um hospital para levar a criança em caso de emergência onde este neurocirurgião possa dar assistência se possível. Isso porque nada melhor que quem conhece a criança para gerenciar emergências com a válvula… O neurocirurgião já conhece neste caso o padrão de imagem e o padrão clínico da criança, o que pode ajudar (e muito!) em decisões críticas.
É importante para as crianças que possuem válvula de derivação para hidrocefalia que os pais/responsáveis saibam a marca e o modelo da válvula implantada. Precisam saber ainda se é de pressão fixa ou regulável e qual a pressão da válvula atualmente. Estes dados são fundamentais para ajudar o raciocínio do neurocirurgião, sobretudo em um momento de avaliação de urgência. Algumas válvulas podem desprogramar em algumas situações e também precisamos saber se este é o caso.
Quando procurar um neurocirurgião?
A hidrocefalia infantil aguda é uma doença muito perigosa que pode evoluir rapidamente e levar ao coma e até a morte. Entretanto, a hidrocefalia também pode se desenvolver de forma um pouco mais lenta e progressiva dependendo da causa. Mas o importante é ressaltar que se seu filho tiver suspeita deste diagnóstico é aconselhado procurar um neurocirurgião pediátrico para esclarecer todas as dúvidas com relação ao seu tipo de hidrocefalia, qual a melhor forma de tratamento, possíveis complicações e resolver o quanto antes este problema.